domingo, 28 de setembro de 2014

O VIDEOGAME CONTRA A ARTE



Tenho andado satisfeito com os diversos olhares críticos sendo direcionados ao videogame ultimamente. Mas percebo que estamos resbalando em alguns lugares-comuns, ainda. Falo especialmente do debate acerca da arte. Adquirimos o mau hábito de evitar aprofundamentos a esse respeito - o debate sempre se insinua com duas perguntas simples e legítimas: videogame é arte? O que é arte? As pessoas em geral morrem de medo de responder essas duas perguntas, eventualmente sugerindo que seriam perguntas mal formuladas e portanto deveriam ser substituídas por "quando videogame é arte?" ou "quando determinada coisa é arte?". Ora, nisso já começamos a responder! Arte é uma qualidade atribuída a algo dependendo de seu contexto. O fato de qualquer coisa se tornar obra de arte é totalmente circunstancial. Portanto, videogame (assim como qualquer coisa ou ação) pode ser considerado arte se estiver apresentado como arte ou imerso num contexto que o legitima como arte.

Isso é só o começo da resposta, claro. Ainda não sabemos o que é arte. Com isso só podemos concluir que a arte não é uma essência que emana do objeto, mas uma certa aura construída ao redor do objeto, de acordo com o lugar que ele ocupa. Já ouviram falar daqueles "caça-talentos"? Pessoas que saem por aí "descobrindo" talentos que estejam ocultos por contextos que não os favorecem ou lhes dão um caráter negativo. Às vezes são chamados de "padrinhos" de alguma banda, artista ou atleta, e uma vez que estes estão sob um contexto favorável, conquistam o poder de "descobrir" outros talentos também. Vamos falar de duas pessoas que em certo momento de suas vidas foram "descobertos como artistas": Jean-Michel Basquiat e Arthur Bispo do Rosário. O primeiro, jovem estadunidense filho de família negra e latino-americana, pichador, evadiu-se da Escola e viveu por algum tempo da venda de alguns objetos que pintava - características que o colocam a margem de uma narrativa hegemônica de sucesso. As circunstâncias e encontros com outras pessoas mais privilegiadas o transportaram para o lugar de artista. O artista, na nossa sociedade, seria o anômalo permitido - sua dissonância com a narrativa hegemônica potencializa a justeza do "ser artista". "De artista e louco, todo mundo tem um pouco". É melhor não contrariar, sabem como é. Por isso falo também de Arthur Bispo do Rosário, negro nordestino que viveu toda sua maturidade numa instituição manicomial. Dizia ser alguém importante para os planos de Deus, alguém que deveria se engajar numa missão sagrada - seu crime (ou loucura, o que aqui dá no mesmo) foi não corresponder à expectativa dominante sobre o que é ser (ou como deve se parecer) um homem santo. Bispo teve um "descobrimento" tardio, mas nas possibilidades que se apresentavam pra ele dentro de um hospício, engajou-se na missão sagrada que reivindicava, produzindo uma quantidade enorme de objetos que hoje são considerados obras de arte e perambulam por museus e bienais do mundo todo. Passou a maior parte de sua vida como louco encarcerado. Talvez o que tenha protegido Basquiat de sofrer o mesmo diagnóstico tenha sido apenas o conjunto de circunstâncias, lugares e tempos que ocupou. Talvez, não. Foi.

Quando observamos essas duas narrativas fica claro que a ação de produzir objetos "artísticos" (seja lá o que isso signifique) não garante o reconhecimento como artista. Não basta fazer: o feito deve ser lido pelas pessoas certas no momento certo. Não se trata de mérito, não se trata de qualidade.

Como já insinuei em outro texto: a arte é um depósito institucional de loucos, vagabundos, bichas, travestis, bruxas, aleijados e o que mais pudermos listar que se afaste de uma "existência tolerável". Não à toa, muitos artistas de circo eram pessoas com necessidades especiais ou que performavam os gêneros de maneiras contra-hegemônicas. "Vejam o incrível homem de seis braços! Vejam a bizarra mulher barbada!" Seria desconcertante ou inaceitável para a expectativa do cidadão comum dividir o cotidiano com essas pessoas, sendo necessário que suas existências se convertessem em atrações para ele. Foi preciso manter Bispo segregado durante toda sua vida, para então podermos suportar uma narrativa póstuma (e positivada) de sua existência. 
Não estou ignorando as diferenças entre o artista circense e o artista de galerias, mas ambos compartilham o espetáculo como meio de interagir com a sociedade. "Uma relação social entre pessoas, mediada por imagens", como define Debord n'A Sociedade do Espetáculo. Os excluídos se tornam os produtores da imagem de sua própria exclusão, e nisso encontram uma forma de serem incluídos. Após a mecanização e burocratização total do trabalho humano, a beleza e a inutilidade encontram na arte o seu lugar permitido.

Gombrich dizia que não existe arte, "o que existe são os artistas". Bom, os artistas são imagens, eles produzem a si próprios, ou melhor: produzem a imagem da anulação de suas pulsões de inutilidade e beleza. Já que falávamos do Basquiat pichador: que tal os pichadores das metrópoles brasileiras? Por que é tão incômodo que escrevam seus nomes ou os nomes de seus coletivos? A expectativa grita: "que coisa despolitizada, escrever o próprio nome!" Mas ué, não é isso que fazem os artistas? Os pichadores apenas resumiram a coisa toda, colocaram em termos mais diretos, abriram um atalho. Escrevem seus nomes pois é apenas assim que suportamos existir na sociedade do espetáculo. Sem isso, amargamos fracasso até o fim de nossas vidas, amargamos a exclusão da narrativa de sucesso. Ter sucesso é tornarmo-nos imagem para a fruição do outro, o outro transformando-se em público. Fabricar essa relação imagética entre o eu e o outro impõe-se como necessidade para qualquer um que não queira sofrer a própria irrelevância na sociedade do individualismo massificado. Só estamos vivos se consumirem nossos nomes.

Gosto de insistir na pichação porque acho que ela é a ilustração perfeita do que chamei de "pulsão de inutilidade e beleza". Você pode morrer, apanhar ou ser preso se for pego fazendo ou se cair do alto de um prédio, e mesmo assim você faz, porque você simplesmente precisa. Não vai mudar sua vida concretamente, por isso seria algo "inútil", mas vai mudar a experiência de vida, vai agregar acontecimentos que estarão fora da máquina do trabalho. Pode parecer feio para quem está acostumado com outdoors de pasta de dente, mas o belo está lá, na pichação, a despeito das regras da estética publicitária. O belo está onde conseguirmos encontrá-lo, não onde nos mandarem olhar.

Ainda não respondi o que é arte, mas vamos lá, estamos tentando. Vamos pegar essa citação de Hans Belting (O Fim da História da Arte) em que ele fala da arte desde uma perspectiva antropológica:

"Numa cultura tribal não existe arte, mas não porque ali as imagens não tenham forma artística: elas apenas não surgiram com a intenção de ser arte, mas serviram à religião  ou a rituais sociais, o que talvez é mais significativo do que fazer arte em nosso sentido."

Gosto muito desse trecho. Quando ele fala "nosso sentido", está evidentemente falando de uma tradição ocidental eurocêntrica, o legado das Belas Artes sobre o pensamento ocidental a respeito das imagens. Mas eu acrescentaria que nem mesmo esse legado escapa da submissão à religião e rituais sociais. Jean Gimpel fala muito sobre "a religião da arte" em seu Contra el Arte y los Artistas - os objetos "de arte", quando liberados da necessidade de representar o sagrado, se mantém no lugar de objetos de culto. Nem mesmo a arte contemporânea, que se gaba por ou tenta desesperadamente aproximar vida e arte através do uso exaustivo de metáforas e gambiarras de toda ordem, consegue se livrar dessa natureza religiosa. Isso tem a ver com sua origem: o lugar por excelência das imagens medievais foi a Igreja, que de uma função didática inicial foram gradativamente assumindo a tarefa de imitar o mundo com verossimilhança, tornando visíveis e convincentes as narrativas sagradas. Os pintores e escultores, porém, eram considerados trabalhadores manuais sem qualquer mérito intelectual - não havia prestígio em ser pintor ou escultor, e aqueles que eventualmente conquistavam algum prestígio eram duramente criticados pelos intelectuais, numa hierarquização da produção humana que hoje Valesca Popozuda chamaria de recalque (Freud? Não conheço).

As artes, nesse momento, eram duas: artes mecânicas e artes liberais. Era nessa estrutura que se situava o sistema educacional do medievo, com um claro recorte de classe: às artes mecânicas se destinavam os filhos dos trabalhadores, onde aprenderiam o trabalho artesanal, a produção material de objetos que posteriormente seria substituída pela indústria; às artes liberais se destinavam os filhos da burguesia, aqueles que poderiam dedicar-se à ciência, à matemática ou à filosofia pois não estaria imposta para eles a necessidade de garantir o próprio sustento. Tal divisão da sociedade também pode ser observada, anteriormente, na Grécia clássica escravocrata: os homens livres (e eram apenas os homens, mesmo) poderiam se dedicar à política, à filosofia e demais afazeres - aos trabalhos de inutilidade e beleza, poderíamos dizer - pois estrangeiros e gente pobre garantiam suas necessidades materiais.

O prestígio de alguns trabalhadores manuais que passavam a ser amplamente solicitados pela Igreja logo se tornou exasperação, afinal, por que alguém de renome em razão da qualidade do trabalho que realiza não pode merecer o mesmo lugar daqueles que não produzem nada concreto? Eu sempre me divirto com as colocações de Leonardo da Vinci a esse respeito:

"Porque não sou instruído, alguns presunçosos crêem poder vilipendiar-me, alegando que não sou um humanista. Estúpida casta... Dirão que, por não ter instrução, não posso dizer-lhes o que quero expressar. Andam inflados e pomposos, vestidos e adornados não seu próprio trabalho mas pelo dos outros. E discutem os meus, eu que sou inventor e tão superior a eles, enganadores e declamadores, recitadores das obras de outros e portanto desprezíveis. Sim, é equivocadamente, escritores, que deixaram a pintura de fora das artes liberais. Por que colocaram a música? Ou a tiram ou incluem a pintura! Por que a chamam mecânica? Porque é manual, porque a mão executa o que a fantasia concebe? Vocês também, poetas, desenham com a pluma o que lhes passa pelo espírito. E se as chamam mecânica porque é feita por dinheiro, quem cai mais do que vocês nesse erro, se é que se pode chamar de erro? Se lecionam para as escolas, não vão para aquelas que pagam melhor? Realizam alguma obra sem nenhum benefício?"

E especialmente divertida é a posição conservadora que assume em relação à escultura, que não consdera merecedora de compor o elenco das artes liberais:

"A escultura não é uma ciência, mas uma arte totalmente mecânica, que provoca suor e fadiga corporal em seu realizador... o cobre de pó e de escombros e deixa seu rosto pastoso e enfarinhado com pó de mármore como um moleiro. Salpicado de lascas, parece coberto de flocos de neve, e sua casa está suja e repleta de escombros e do pó da pedra. O pintor, por outro lado, está comodamente sentado de frente para sua obra, bem vestido, e segura um pincel levemente empapado em cores delicadas. Está tão bem vestido quanto lhe apraz; sua sala, cheia de móveis encantadores, é bela; muitas vezes é acompanhado da música ou da leitura de obras belas e variadas que, sem o ruído do martelo nem de barulheira semelhante que se misture, pode ser ouvida com prazer."

O esforço retórico de Da Vinci é claro: quer fazer crer que seu trabalho de pintor se adequa muito mais ao ócio, a um universo de inutilidade e beleza próprio do estilo de vida das classes privilegiadas, do que ao mundo do esforço físico e da ocupação do tempo pelo trabalho. Lentamente os polos se invertem: a pintura, a escultura e a arquitetura são integradas às artes liberais, e o academicismo francês inaugura toda uma sistemática de julgamento e avaliação de trabalhos de pintura e escultura. Se antes a qualidade de um trabalho estava relacionada ao quão convincentemente ilustrava as narrativas sagradas, o critério acadêmico passa a ser o domínio sobre os elementos que garantem o sucesso desse convencimento. A forma substitui o tema como interesse central da produção de imagens. É engraçado fazermos um paralelo entre os critérios de julgamento de uma pintura ou escultura nessa época com as atuais "reviews" de jogos de videogame, e percebermos que não há diferença! Se lermos a tabela abaixo, por exemplo:

Leonardo da Vinci
composição: 15
desenho: 16
colorido: 4
expressão: 14
total: 49

Essa metodologia é proposta pelo acadêmico Roger de Piles, e desconsidera qualquer fator contextual, ou seja, ignora os trabalhos como produtos e produtores da cultura. Há uma misteriosa e arbitrária regra de beleza perfeita à qual estão submetidas todas as imagens de todas as épocas e lugares. Poderíamos trocar "composição" por "level design" e "desenho" por "gráficos", e estaríamos falando de reviews de jogos de videogame. Há um texto interessante da Liz Ryerson sobre como esse tipo de critério universal é utilizado acriticamente por juris de festivais de videogame independente - onde supostamente estariam os jogos que transcendem as regras da qualidade hegemônica.

Na ânsia de escreverem seus nomes na história das existências relevantes, os trabalhadores das artes mecânicas buscaram ascender à posição dominante em vez de eliminar a dominação. O academicismo francês instaura o formalismo através dos critérios de análise acima, tentando acolher a imagem no rol dos métodos científicos. Surgem as Belas Artes como a ciência da beleza, e o sentido de "arte" como "fazer", como conjunto de técnicas e conhecimentos aplicado a qualquer coisa, acaba se perdendo. As antigas artes liberais são transportadas para a ideia de ciência, enquanto as antigas artes mecânicas são divididas entre os trabalhos do operariado industrial e a ciência da beleza sustentada pelo meio acadêmico. Nisso, a figura do artesão como produtor de imagens começa a ser marginalizada, pois não é nem um artista digno de nota (pois o contexto não favorece seu "descobrimento"), nem tão eficiente (e onipresente) quanto a indústria de objetos publicitários e de uso cotidiano.

Com o formalismo, surgiram os modernistas e seu distanciamento dos critérios universais de beleza, uma vez que se o principal aspecto de uma, agora, "obra de arte" era sua harmonia formal (a conquista da beleza universal), por que deveria seguir tentando convencer-se como imitação convincente da realidade? A imagem de arte é a imagem voltada para si mesma, e tal premissa encontra seu auge nas experiências abstratas das vanguardas modernistas. Ironicamente, nem mesmo essas deixam de estar subordinadas a visões de mundo, posições políticas e determinados recortes no tempo e no espaço - há sempre uma história sendo contada junto às imagens, e a proliferação de manifestos que alimenta os modernos comprova uma necessidade inescapável de justificar através do discurso a existência das imagens. Sem Deus, heróis ou santos, no entanto, a própria imagem torna-se o seu assunto, sem que deixe de trazer consigo um repertório de interação com as imagens construído por séculos pela pintura sacra e, depois, pelos retratos e outros temas pintados aos burgueses em ascenção social. A moldura delimita a passagem da pintura como construção imagética da sacralidade de um local (pintura arquitetônica, mural) para a pintura como instrumento de diferenciação social. Alguém importante deve ser pintado pelas mãos daquele que pinta Deus. Sem vínculo com o lugar que a abriga, a pintura emoldurada passa a ser portátil e mais facilmente comercializável. Quando os artistas a serviço da burguesia e da academia passam a alimentar de imagens os salões acadêmicos e as casas burguesas, o Estado - não mais a Igreja - toma para si a responsabilidade de ser o lugar que abriga esse legado, através dos museus.

O museu antropológico e de antiguidades reúne sob seu acervo registros materiais e objetos que outrora tiveram uma função ativa na sociedade, ou então que se localizam em culturas estrangeiras, exóticas, e que obedecem a regras de uso que não posem ser imitadas em nossa sociedade. Uma exposição com artigos indígenas, por exemplo, se dedica a narrar as funções originais dos objetos agora descontextualizados. Para que funcione um museu, é preciso retirar o objeto do contexto original e apresentá-lo como agente desse contexto, como explicação de um outro mundo. O Estado, através dos museus, constrói narrativas nacionais onde figuram os grandes mestres e heróis do passado - é ao museu que se dirigem os acadêmicos estudiosos das Belas Artes, com o desejo de tornarem-se, no futuro, os nomes emoldurados nas paredes. Roy Wagner, em A Invenção da Cultura, diz algo mais ou menos assim: ao entrarmos em contato com outras culturas, também entramos em contato com visões estrangeiras a respeito da nossa cultura - inventamos a cultura do outro e, no processo, reinventamos a nossa. E quando entramos em contato com a nossa própria cultura emoldurada, descontextualizada e recontextualizada por meio do discurso museográfico? A obra de arte emoldurada - e eu gostaria que imaginássemos a moldura aqui muito mais como um discurso da separação e muito menos como o objeto moldura, simplesmente - é tributária das maneiras como o museu organiza, expõe, cataloga e explica o que está longe ou já morreu. O desejo de expor, emoldurar, mostrar "sua arte" pela via institucional, submetê-la a editais (ou festivais burocratizados de videogame indie), comemorar a aquisição de gabinetes de fliperama pelo MOMA, comemorar a ascenção do videogame ao que o Estado, o Capital e seus braços consideram digno de compor um mosaico de caveiras heróicas. A arte é retardatária da cultura! Não há nada mais sem sentido do que a apologia de um espaço neutro que abrigue as imagens do presente. Nada mais sem sentido do que produzir objetos hoje pensando no museu ou na galeria como seus lugares de existência. As imagens do presente estão em todos os lugares que não são o museu, que não são a arte - pois a arte é a imagem da existência anulada, o contexto do contexto negado. E talvez aqui tenhamos encontrado nossa definição. Tomemos cuidado de não suicidar o videogame popular antes de seu amadurecimento. O videogame não é arte, porque o videogame está vivo! Não precisamos ascender a classe alguma, façamos desde baixo, contra a arte e a indústria cultural, pela cultura popular! Que todos tenham sua dose de sacrifício para que todos tenham sua dose de liberdade!

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