quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

RACISMO, ROLEZINHO, MEMES E O VIDEOGAME


Tenho acompanhado os chamados "rolezinhos" através de notícias e análises na internet. Pra quem não sabe, os rolezinhos são um fenômeno recente que tem apavorado os administradores e frequentadores habituais dos shopping centers de São Paulo, Vitória, Belo Horizonte e outros lugares que talvez tenham me escapado. Convocados pela internet, talvez como o resultado de um aprendizado construído pelos protestos de 2013, os eventos reúnem dezenas de funkeiros num território de existência que lhes é normalmente negado. É a juventude negra das favelas ocupando um espaço que deveriam ocupar com tanta legimitidade quanto qualquer um dos brancos sentados na praça de alimentação, sem provocar seus olhares de medo e indignação.

Que perigo real os funkeiros oferecem aos outros "consumidores de bem", afinal de contas? Isso é um tanto misterioso, embora os critérios pra que se estabeleça quem são os de bem e quem deve ser reprimido sejam bem intuitivos para os seguranças particulares, a polícia (que, entre outras funções que desempenha, uma das mais importantes é o extermínio sistemático da população negra periférica - portanto não há aqui um "deslocamento" de sua função), e os frequentadores ofendidos com essa presença estranha. É evidente: shopping não é lugar de negro, e funk é música de bandido (assim como foi com o rap durante muito tempo - e ainda é, embora o funk tenha roubado esse protagonismo da rejeição).

Tenhamos consciência do seguinte: a sociedade de consumo já está dada. Concordo que shoppings são uma porcaria, um lugar estúpido que acolhe os impulsos de consumo incutidos nas pessoas por uma sociedade mediada por publicidade. Um universo simulado onde não penetram as desigualdades e diferenças do mundo lá fora. Por isso é chocante que o jovem negro e periférico traga sua presença massiva e seu repertório cultural pra dentro do shopping: é justamente um dos mundos que se espera que permaneça lá fora. E há um aspecto construtivo nos rolezinhos: essa presença negra massiva demanda uma organização que é tributária de um repertório social das manifestações de rua. Sem essa organização, a presença do jovem negro no shopping seria reprimida de maneira invisível, como o procedimento de rotina que realmente é. Que tipo de repercussão pode ter a mais banal das agressões racistas, como constranger um pequeno grupo de corpos errados no lugar errado? Normal. Mas uma multidão não pode ser expulsa pela porta dos fundos. Destruir o shopping passa por destruir o sonho da paz branca que se abriga no shopping.

O branco não entende, mas teme por isso. Não é o medo dos assaltos ou qualquer outra coisa: o medo é da presença negra. É exatamente o medo que estava manifesto naquele jogo HU3 Attack (fruto da recente compilação Super BR Jam): os negros e funkeiros ocupando os espaços dos brancos não pra obedecer as normas brancas de existência (que são sempre mais estreitas para os não-brancos), mas pra existirem de acordo com a própria estética. Você que estava se perguntando até esta altura do texto qual seria a relação dos rolezinhos com o videogame, acho que agora chegamos nela.

Muito já se chorou sobre as acusações de racismo disparadas contra o jogo, e acho que é sempre válido explicar mais uma vez: o racismo não é como a maldade do vilão de desenho animado, uma característica permanente de um ser maligno que esfrega suas mãos planejando o próximo genocídio. Não nascemos racistas, mas nascemos num contexto cultural racista que nos educa para o racismo. Para não cometermos agressões racistas é necessário que nos contra-eduquemos, ou seja, que conscientemente façamos o exercício da autocrítica, reestruturando nossos discursos e práticas. Não somos racistas porque somos naturalmente racistas e morreremos assim. Somos situacionalmente racistas, ou seja, ninguém está livre de ser racista (ou machista, transfóbico, capacitista etc.) e justamente por isso temos a responsabilidade de localizar as ocorrências e fazer as correções. Sabe aquele papo "depois dessa eu vou pensar duas vezes antes de..."? Então, é exatamente isso. Se você sente vergonha ou culpa de reproduzir alguns discursos e escolhe omitir estes na frente de determinadas pessoas, então talvez você esteja ignorando sua autocrítica latente.

Não interessa se a pessoa é "do bem", "não teve más intenções" ou "dá dinheiro para instituições de caridade". Não é a pessoa que cometeu a agressão que está sendo discutida, mas sim a agressão e o contexto que motivou a agressão. O debate nunca foi sobre as intenções de ninguém, e o agressor nunca deve ser protegido da crítica seja lá qual for a sua reação posterior. Pedir perdão não encerra debate nem resolve o problema do contexto.

Já faz algum tempo desde que venho denunciando o perigo dessa cultura do "hue", seus memes e do uso de toda a iconografia que se construiu por trás disso. Narrando de maneira breve a origem do "hue": no meio dos anos 2000 começaram a se popularizar os jogos multiplayer massivos online (Ragnarok é um bom exemplo) bem como a internet a cabo no Brasil. O acesso dos jogadores brasileiros a esses jogos se dá algum tempo depois de já ter se estabelecido uma base de jogadores de maioria estadunidense (ou anglófonos) nos servidores. Resultado: um grande número de brasileiros sem domínio da língua inglesa, tendo o primeiro contato com essa estrutura de jogo, acaba tendo que driblar essa limitação e encontra algumas soluções. Começam a vestir seus personagens de verde-amarelo e a abordar outros jogadores perguntando "br?" para encontrar outros brasileiros no universo do jogo com quem possam interagir sem a barreira da língua. A narrativa mais difundida conta que a partir disso se desenvolveu um sentimento nacionalista e alguns grupos de jogadores brasileiros começaram a se colocar no jogo com o objetivo de sabotar os gringos, com condutas que descumprem a etiqueta do jogo, considerando suas regras e as condutas habituais dos outros jogadores (embora a estrutura do jogo possibilite essas desobediências - e, na minha leitura das coisas, essa possibilidade também constitui as regras "não-previstas" do jogo). Eu não saberia dizer se esse comportamento é a reação a uma hostilidade à presença brasileira nos jogos (como se vê nos shoppings) ou se é sua origem - provavelmente as duas coisas se atravessem - mas o fato é que se desenvolveu um mal-estar generalizado dos jogadores gringos em relação aos brasileiros e daí pra formação de um conjunto de símbolos e discursos xenófobos e racistas foi um pulo.

Logo a associação do "comportamento inadequado" à figura do negro é feita, e uma busca por "br hue hue" no Google Imagens pode ser bem elucidativa - lá está uma profusão de caricaturas de pessoas negras representadas como personagens grotescos "sem noção". Os jogadores brasileiros que dominam o inglês acabam se aproximando desse imaginário e internalizam esse discurso xenófobo, que casa perfeitamente com outros blablablás do nosso senso comum: brasileiro só quer levar vantagem, brasileiro é preguiçoso, ai-como-eu-queria-ser-europeu etc. Que bela oportunidade pra ridicularizar o negro! Reúnem-se os nerds e indies brancos nos diversos fóruns da internet para compartilhar caricaturas de gorilas segurando bandeiras do Brasil - até aí nenhum problema, até aí tudo é engraçadíssimo e inofensivo, afinal não estamos falando do negro e sim de uma inocente alegoria do "brasileiro sem noção" que, assim, só por acaso, aparece representada como negro ou como macaco em alusão ao negro. O racismo está nos olhos de quem vê, e eu, branco, não tinha intenção nenhuma em ser racista quando dava gargalhadas do meme blackface com outros 120 comentários alegres de colegas indies no meu perfil do facebook.

Acho maravilhoso que os rolezinhas estejam acontecendo logo depois do lançamento do HU3 Attack: o jogo é um rolezinho perfeitamente descrito! Escolha entre três personagens gringos para defender o fliperama da invasão dos negros - eles são como zumbis, ouvem funk e merecem ser mortos violentamente. Os gamers tem um medo enorme, não-declarado (algumas vezes sim, na verdade), de que seu mundo seja orkutizado - neologismo que descreve de forma pejorativa um mesmo fenômeno de inclusão.

O que permitiu o surgimento do HU3 Attack não foi a maldade de um ou dois indies que fizeram o jogo, mas a irresponsabilidade instalada nessa coletividade indie que se formou. Não há nada de original no jogo - ele apresenta, sem muita imaginação, todas as imagens e discursos que formam o repertório racista já bem sólido que percorre os círculos indies e nerds. O mesmo repertório que justifica a existência dos rolezinhos. É triste que esse episódio torne evidente a dinâmica social da cena indie que deu vazão a esse jogo: acima de tudo, as relações de mercado. Proteger o agressor sempre que isso contribuir pro meu acúmulo de capital social. Produção alienada de conteúdo. Produzir por produzir, custe o que custar, nada mais importa. Algumas vezes, o videogame independente é inimigo. Que venham os rolezinhos, nos shoppings e no videogame!



Links sobre os rolezinhos:





Links sobre o HU3 Attack:



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